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sábado, 11 de outubro de 2014

No tempo dos bondes...
nelson antonio
 
 
Morei no Prado, desde que me entendo por gente.  E havia duas linhas de bondes elétricos que cruzavam minhas ruas diuturnamente, indo de um abrigo ao outro,   incessante e incansavelmente sobre o  carril fincado nas ruas de pedras. Os meus bondes iam até a Gameleira  num trajeto saculejante,  longo e gratificante, enquanto havia também uma linha rapidinha que ia só até o Calafate, pouco depois do Departamento de Instruções da Polícia Militar, o dito D.I., na rua Diabase com Platina.  
Eu já era um  menino levado  e  perseguia os tornozelos tentadores das mocinhas que subiam nos dois  estribos em degrau alto dos bondes indolentes de minha adolescência. Mulheres não usavam calça comprida, coisa de levianas e o molecório, minha turminha,   sentado no meio-fio das calçadas ficava  na espreita, deliciosamente a ver aqueles pedacinhos de pernas brancas e rosadas que eram  todo meu deleite na hora do banho diário. Haja mãos ! Sem medo de nascer cabelo na palma delas  como me amedrontava o pudico Padre Américo da Igreja de São Sebastião, às confissões de todos os sábados.
Os bondes pachorrentos  eram muitas vezes habilmente  pêgos andando  quando arfavam para subir as ruas íngremes  de Beagá ou quase paravam nos trechos em curva, como na Rua dos Pampas com a Praça Clemente Faria. O cobrador, com um maço enorme de notas entrelaçadas  numa das mãos, ia percorrendo o estribo  a cumprir sua difícil missão de  não deixar ninguém  descer sem ter-lhe pago antes  os trocados da viagem. Muitos, a maioria ,  aproveitando  o trajeto sabido e  esperado do condutor sobre o  estribo ,  iam pro outro lado do bonde, onde uma enorme vara de madeira  impedia o acesso , uma espécie de guarda de madeira,   e fugiam desta cobrança, abaixando-se, movimentando-se para frente ou para trás sempre com um  olho no pobre do funcionário municipal   e outro olho nos postes que zuniam perto de nossas cabeças. Era uma perseguição implacável, sempre vencida pela molecada esperta que na hora agá , a poucos metros do cobrador afoito atrás deles  , saltava daqueles paquidermes  elétricos e sumia pelas vielas dos bairros aos risos e deboches. Quando pegos pelas camisas , simplesmnte pagavam a ninharia exigida pelo condutor.
Dentro dos bondes os cartazes escondiam o encardido das madeiras mal envernizadas com propagandas mil da cera Parquetina , Sabão Rinso, Cerveja Antártica Faixa-Azul ( só  se bebia cervejas de casco escuro, tradicionalmente ) , Toddy, "Eu uso Sabonete Lux " ( Amália Rodrigues )  Leite Moça,  " Quem bebe Grapette , Repete "  ,  Cigarros Continental, Mistura Fina, Luís XV, Lincoln, Mentolados, Picadilly  ( um mata-ratos daquele, só pior que o Saratoga ! ) . Havia também  um poema terapêutico  em letras garrafais que jamais esquecí:
 " Veja ilustre passageiro  o belo tipo faceiro que agora tens ao seu lado 
Acredite, quase morreu de bronquite, salvou-o o Rum Creosetado  !  "
 
      Você podia ficar horas e horas dentro de um bonde, do início ao fim da linha , sem ser incomodado
pois o cobrador nunca se esquecia da cara de ninguém e nunca cobrava duas vezes da mesma pessoa.  Ao chegar no final do trajeto, o bonde parava   e havia um ritual de manobras  para inverter a trajetória da marcha dos bondes:  inverter o gancho elétrico que os prendiam à rede elétrica,  reverter todos os  encostos dos bancos de madeira da lei  numa barulheira infernal, mudar para o outro lado  o madeirame  lateral  que impedia a entrada por aquele lado da via de tráfego ( embarque e desembarque era  sempre pelo lado do meio-fio ) , o motorneiro dirigir-se para a frente oposta do bonde. Isto porque a linha era de mão  única,não tinha  sentido duplo ,   e o bonde nunca dava marcha-a-ré como os trens.
Dentro dos bondes, a gente tentava se aproximar das meninas com cortesia:
-Posso sentar-me ao seu lado?
 - Posso falar com você? 
-Qual a sua graça? 
- Você não é irmã da...?
- Qual o telefone de sua rua ?
( previlegiados os moradores que o tinham em casa )
- Você é daqui? Eu moro na rua Matosinhos com Pampas.
E as meninas , educadas  a não falar com estranhos,  respondiam polidamente  :
- Não , obrigada. Já sou comprometida.
 Falando em meninas, à noite, tínhamos as horas dançantes, cada dia na casa de um, tudo meiado, exceto com  os eternos penetras , onde as bebidas preferidas eram o Crush e o Grapette , deliciosas   mas em garrafinhas tão pequenas do tamanho de um palmo  que mal chegavam para dois goles.  Os mais arrojados tomavam  um Hi-Fi ( Fanta com vodka ), um Cuba-Libre ( Coca e Ron Merino ), um Drink Dreher, um  Drurys uísque nacional ( o importado era uma nota preta ), um Martini  branco e doce,  um Rabo de Galo  ou um Alexander . Bebidas  que nos deixavam arrojados e fora dos limites da introspecção , os ditos introvertidos, muitas vezes roubando beijos que  nunca teríamos a coragem de roubar se estivéssemos sóbrios . Também chamados de bailes engoma-cuecas pois  ninguém resistia sem  se entusiasmar totalmente  a um rostinho colado, a um corpo   banhado e perfumado com Heur Intime (Hora Íntima) grudadinho ao nosso, num ritmo coxal de  dois pra lá dois pra cá,  aos doces murmúrios  femininos do  " para... não ...chega pra lá...desgruda...olha a minha mãe vendo... acho que vou ao banheiro "  , combinados com o som das vitrolinhas  estridentes com os boleros  dolentes  de Waldir Calmon, Gregório Barros, Luca Gatica com sua La Barca indefectível aos nossos ouvidos musicais. Estes encontros dançantes  começavam e terminavam cedo  pois depois das dez horas pessoas direitas não podiam ficar na rua e todas as casas tinham seus portões trancados. Era quando começava a se ouvir , como cigarras cantantes, o apito dos guardas-noturnos , uns para se comunicarem com os outros,  ou talvez para dizer aos ladrões:
 - Estou aqui....cuidado!
Bons tempos aqueles em que se podia andar protegido pelas ruas, se namorava de apenas  mãos dadas nos portões , se punha cadeiras nas calçadas para conversas diárias intermináveis, se ouvia atentamente  a introdução da ópera castroalvense  " O Guarani "   sonenizando e alardeando a chegada da  Hora do Brasil... " dezenove horas no Rio de Janeiro "
Depois foram chegando os enormes e modernos   trolébus ,em 1951,  com requinte de poltronas almofadadas, substituindo gradativamente os nossos queridos bondes que, como nós todos cinquentenários , tornaram-se artigo de museu.O último bonde circulou no dia 30/06/1963, morrendo para sempre este meio de circulação em Beagá
 ( Veja o filme de sua morte e enterro solene  em  http://www.youtube.com/watch?v=IDtXms7m9Dk.  ) 
Os trólebus desapareceram em 1969, e alguns trens elétricos ainda permaneceram como suburbanos para Betim, Sabará, Raposos e Rio Acima.
Aqui em Beagá tem um belo exemplar de um bonde, o de prefixo 75,  do meu tempo de criança no Museu Histórico  Abílio Barreto, na Rua Bernardo Mascarenhas,  Cidade Jardim. Está lá, imponente, digno,
sobre seus trilhos de prata guardando no seu interior todas as minhas lembranças e saudades do meu tempo de bondes.

Quando estou triste e saudoso , vou lá rever o velho amigo que tantas alegrias me deu. Como se visita o túmulo de uma mãe. 

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