No tempo dos
bondes...
nelson
antonio
Morei no Prado, desde
que me entendo por gente. E havia duas linhas de bondes elétricos que cruzavam
minhas ruas diuturnamente, indo de um abrigo ao outro, incessante e
incansavelmente sobre o carril fincado nas ruas de pedras. Os meus bondes iam
até a Gameleira num trajeto saculejante, longo e gratificante, enquanto havia
também uma linha rapidinha que ia só até o Calafate, pouco depois do
Departamento de Instruções da Polícia Militar, o dito D.I., na rua Diabase com
Platina.
Eu já era um
menino levado e perseguia os tornozelos tentadores das mocinhas que subiam nos
dois estribos em degrau alto dos bondes indolentes de minha adolescência.
Mulheres não usavam calça comprida, coisa de levianas e o
molecório, minha turminha, sentado no meio-fio das calçadas ficava na
espreita, deliciosamente a ver aqueles pedacinhos de pernas brancas e rosadas
que eram todo meu deleite na hora do banho diário. Haja mãos ! Sem medo de
nascer cabelo na palma delas como me amedrontava o pudico Padre Américo da
Igreja de São Sebastião, às confissões de todos os sábados.
Os bondes pachorrentos
eram muitas vezes habilmente pêgos andando quando arfavam para subir as ruas
íngremes de Beagá ou quase paravam nos trechos em curva, como na Rua dos Pampas
com a Praça Clemente Faria. O cobrador, com um maço enorme de notas entrelaçadas
numa das mãos, ia percorrendo o estribo a cumprir sua difícil missão de não
deixar ninguém descer sem ter-lhe pago antes os trocados da viagem. Muitos, a
maioria , aproveitando o trajeto sabido e esperado do condutor sobre o
estribo , iam pro outro lado do bonde, onde uma enorme vara de madeira impedia
o acesso , uma espécie de guarda de madeira, e fugiam desta cobrança,
abaixando-se, movimentando-se para frente ou para trás sempre com um olho no
pobre do funcionário municipal e outro olho nos postes que zuniam perto de
nossas cabeças. Era uma perseguição implacável, sempre vencida pela molecada
esperta que na hora agá , a poucos metros do cobrador afoito atrás deles ,
saltava daqueles paquidermes elétricos e sumia pelas vielas dos bairros aos
risos e deboches. Quando pegos pelas camisas , simplesmnte pagavam a ninharia
exigida pelo condutor.
Dentro dos bondes
os cartazes escondiam o encardido das madeiras mal envernizadas com propagandas
mil da cera Parquetina , Sabão Rinso, Cerveja Antártica Faixa-Azul ( só se
bebia cervejas de casco escuro, tradicionalmente ) , Toddy, "Eu uso Sabonete Lux
" ( Amália Rodrigues ) Leite Moça, " Quem bebe Grapette , Repete " ,
Cigarros Continental, Mistura Fina, Luís XV, Lincoln, Mentolados,
Picadilly ( um mata-ratos daquele, só pior que o Saratoga !
) . Havia também um poema terapêutico em letras garrafais que jamais
esquecí:
" Veja ilustre
passageiro o belo tipo faceiro que agora tens ao seu
lado
Acredite, quase morreu
de bronquite, salvou-o o Rum Creosetado ! "
Você podia ficar
horas e horas dentro de um bonde, do início ao fim da linha , sem ser
incomodado
pois o cobrador nunca
se esquecia da cara de ninguém e nunca cobrava duas vezes da mesma pessoa. Ao
chegar no final do trajeto, o bonde parava e havia um ritual de manobras para
inverter a trajetória da marcha dos bondes: inverter o gancho elétrico que os
prendiam à rede elétrica, reverter todos os encostos dos bancos de madeira da
lei numa barulheira infernal, mudar para o outro lado o madeirame
lateral que impedia a entrada por aquele lado da via de tráfego ( embarque e
desembarque era sempre pelo lado do meio-fio ) , o motorneiro dirigir-se para a
frente oposta do bonde. Isto porque a linha era de mão única,não tinha sentido
duplo , e o bonde nunca dava marcha-a-ré como os trens.
Dentro dos bondes, a
gente tentava se aproximar das meninas com cortesia:
-Posso sentar-me ao seu
lado?
- Posso falar com
você?
-Qual a sua
graça?
- Você não é irmã
da...?
- Qual o telefone de
sua rua ?
( previlegiados os
moradores que o tinham em casa )
- Você é daqui? Eu moro
na rua Matosinhos com Pampas.
E as meninas ,
educadas a não falar com estranhos, respondiam polidamente
:
- Não , obrigada. Já
sou comprometida.
Falando em
meninas, à noite, tínhamos as horas dançantes, cada dia na casa
de um, tudo meiado, exceto com os eternos penetras , onde as bebidas preferidas
eram o Crush e o Grapette , deliciosas mas em garrafinhas tão pequenas do
tamanho de um palmo que mal chegavam para dois goles. Os mais arrojados
tomavam um Hi-Fi ( Fanta com vodka ), um Cuba-Libre ( Coca e Ron Merino ), um
Drink Dreher, um Drurys uísque nacional ( o importado era uma nota preta ), um
Martini branco e doce, um Rabo de Galo ou um Alexander . Bebidas que nos
deixavam arrojados e fora dos limites da introspecção , os ditos introvertidos,
muitas vezes roubando beijos que nunca teríamos a coragem de roubar se
estivéssemos sóbrios . Também chamados de bailes engoma-cuecas pois ninguém
resistia sem se entusiasmar totalmente a um rostinho colado, a um corpo
banhado e perfumado com Heur Intime (Hora Íntima) grudadinho ao nosso,
num ritmo coxal de dois pra lá dois pra cá, aos doces murmúrios femininos do
" para... não ...chega pra lá...desgruda...olha a minha mãe vendo... acho que
vou ao banheiro " , combinados com o som das vitrolinhas estridentes com os
boleros dolentes de Waldir Calmon, Gregório Barros, Luca Gatica com sua La
Barca indefectível aos nossos ouvidos musicais. Estes encontros dançantes
começavam e terminavam cedo pois depois das dez horas pessoas direitas não
podiam ficar na rua e todas as casas tinham seus portões trancados. Era quando
começava a se ouvir , como cigarras cantantes, o apito dos guardas-noturnos ,
uns para se comunicarem com os outros, ou talvez para dizer aos
ladrões:
- Estou
aqui....cuidado!
Bons tempos aqueles em
que se podia andar protegido pelas ruas, se namorava de apenas mãos dadas nos
portões , se punha cadeiras nas calçadas para conversas diárias intermináveis,
se ouvia atentamente a introdução da ópera castroalvense " O Guarani "
sonenizando e alardeando a chegada da Hora do Brasil... " dezenove horas no Rio
de Janeiro "
Depois foram chegando
os enormes e modernos trolébus ,em 1951, com requinte de
poltronas almofadadas, substituindo gradativamente os nossos queridos bondes
que, como nós todos cinquentenários , tornaram-se artigo de museu.O último bonde
circulou no dia 30/06/1963, morrendo para sempre este meio de circulação em
Beagá
( Veja o filme de sua
morte e enterro solene em http://www.youtube.com/watch?v=IDtXms7m9Dk. )
Os trólebus
desapareceram em 1969, e alguns trens elétricos ainda permaneceram como
suburbanos para Betim, Sabará, Raposos e Rio Acima.
Aqui em Beagá tem um
belo exemplar de um bonde, o de prefixo 75, do meu tempo de criança no Museu
Histórico Abílio Barreto, na Rua Bernardo Mascarenhas, Cidade Jardim. Está lá,
imponente, digno,
sobre seus trilhos de
prata guardando no seu interior todas as minhas lembranças e saudades do meu
tempo de bondes.
Quando estou
triste e saudoso , vou lá rever o velho amigo que tantas alegrias me deu. Como
se visita o túmulo de uma mãe.
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